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Lançamento: Áurea Martins em Senhora das Folhas
Cantora celebra sua ancestralidade mais funda em novo disco ÁUREA MARTINS faz mergulho no universo do sagrado feminino das rezadeiras e benzedeiras, num repertório que vai de bendito medieval a Projota, de Flaira Ferro a Arlindo Cruz
ÁUREA MARTINS é uma artista diamantífera, única. Nascida para a música no contexto da bossa-nova, uma das únicas cantoras negras da cena, com mais de 50 anos de shows, 9 discos solo, inúmeras participações em outros, Prêmio de Melhor Cantora no PMB 2009, um curta metragem sobre sua vida com mais de 21 prêmios (inclusive de melhor atriz), em 2022 Áurea comemora 82 anos como se debutasse, cheia de vigor e energia telúricos, lançando disco e fazendo lives ao lado de parceiros cinco décadas mais jovens. "A vida toda tive que me reinventar. A volta ao mundo em 80 dias é para os fracos, a volta ao mundo é em 80 lives!" diz ela. Áurea sabe que seu tempo de colher é hoje. Ela está vivíssima. E dando frutos.
SOBRE O DISCO
Em SENHORA DAS FOLHAS (Biscoito Fino / Natura Musical), ÁUREA MARTINS encarna o feminino curador em canções que homenageiam as rezadeiras, curandeiras e benzedeiras do Brasil, mulheres-matriz fundamentais no esgarçado tecido social deste país profundo. No repertório, Incelenças do sertão de Minas Gerais e bendito medieval ganham roupagem luxuosa e camerística que une viola caipira, violoncelo e viola da gamba e se unem a canções ultrajovens como “A Rezadeira” do rapper Projota e “Ponto das Caboclas de Camila Costa”, à um canto do povo Parakanã e um poema da etnia Macuxi, sambas de lá do recôncavo e daqui do Rio de Janeiro, compondo um disco surpreendente e contemporâneo, reverente e iconoclasta, que tece como num bordado o diálogo entre os imaginários urbano e rural do país. Unindo os vários Brasis e as duas pontas da vida, Áurea visita sua ancestralidade e ganha o terreiro do qual é rainha por herança e direito: o solo fértil das miscigenações afro-indígenas, caboclo-encantadas, orixás-pajé, recebendo de braços abertos o novo. O disco faz contato com a nossa essência formativa e ilumina o lugar da mulher como protagonista e guardiã dos saberes deste país diverso. Estabelecendo a possibilidade real de elevar a potência do seu alcance na cena nacional, para ser universal, Áurea fala da sua aldeia.
"E nossa própria alma nunca se redimirá sem a voz sagrada de Áurea Martins" Aldir Blanc
RAÍZES, TRONCO E FOLHAS
Por Leonardo Lichote
RAÍZES – ancestralidade
Foi como cantora da noite que Áurea Martins construiu o refinamento curtido de sua voz. Vê-la encarnada agora, aos 82 anos, como sacerdotisa da floresta, benzedeira, ialorixá, anciã indígena, tia da comunidade, ao longo das 11 faixas deste álbum, é revelador porque nos apresenta uma face de sua alma até então oculta — para nós e para a própria Áurea.
Seu canto em “Senhora das folhas” soa novo em folha por nos revelar com nitidez sua essência — o disco, dedicado ao universo amplo das rezadeiras — é atestado dos tempos, ventos e folhas que cabem na voz de Áurea.
ÁUREA nos conta que o universo das rezadeiras reside em sua memória na figura de dona Francelina, sua avó, senhora centenária que a rezava (“fui rezada por folha”) quando ela era criança em Campo Grande, bairro carioca onde nasceu e cresceu e para onde pretende voltar um dia. Lembra Justina, que sucedeu Vovó Francelina na função — e depois foi sucedida por Tia Zélia, que ensinou Áurea a ler e a escrever. É esta matrilinearidade que atravessa seu canto em todo o álbum.
ÁUREA evoca essas memórias na sala de sua casa, microcosmo deste universo amplo: Santo Antônio no altar; vaso com espada de São Jorge à porta; numa banqueta, apoiados lado a lado, os livros “Escravidão: volume II”, de Laurentino Gomes, e “Plantas medicinais”; e na parede retratos de Ghandi e Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica, da qual ela é fiel.
TRONCO – o projeto
“Senhora das Folhas” nasceu do desejo de Renata Grecco, idealizadora e diretora artística do álbum, de lançar luz sobre este recorte da teia invisível de saberes populares tradicionais femininos, que atravessa o Brasil.
— É uma sororidade silenciosa — define. — Uma teia de afetos e fazeres que, no Brasil profundo, nos lugares onde pouco chega o poder público, ajuda a manter coeso o frágil tecido social. São mulheres que se dedicam ao cuidar da comunidade, das plantas, do que nasce e precisa ser protegido, do que morre e precisa renascer. De qualquer um que chegue em dores às suas portas. Exercem seus dons de maneira gratuita e graciosa. São mulheres-matriz. Avós, guardiãs. Pontes tangíveis entre o visível e o invisível. Foi guiada por esse olhar que comecei a pesquisar e definir o repertório.
— A parceria do NATURA MUSICAL foi fundamental para que realizássemos o projeto exatamente como idealizado, com todo o cuidado, liberdade e respeito que precisávamos. Somos muito gratos também à Biscoito Fino também, que foi casa e acolhimento para o disco, declina Renata.
— A música propõe debates pertinentes, que impactam positivamente na construção de um mundo melhor. Acreditamos que os projetos selecionados pelo edital Natura Musical podem contribuir para a construção de um futuro mais bonito, cada vez mais plural, inclusivo e sustentável, afirma Fernanda Paiva, Head of Global Cultural Branding.
Lui Coimbra, que assina a produção e também a direção musical de “Senhora das folhas”, construiu a sonoridade do álbum com uma ideia central em mente:
— Parti da voz de Áurea, sempre. Mesmo ela nunca tendo cantado esse tipo de repertório, era esse o norte — conta o arranjador, que alcançou assim uma sonoridade refinada e enraizada como o canto de Áurea, usando de programações eletrônicas a viola da gamba, mas sem perder de vista a “essência das canções”. — Não queríamos um disco apenas de resgate, de registro de campo. Meu jeito de pensar música é esse, honrando e reverenciando a tradição, mas sem engessá-la, o ritual e o disco são lugares diferentes.
FOLHAS – as faixas do disco
A vinheta “Incelença da chuva” com as vozes das Cantadeiras do Souza, instaura o universo de “Senhora das folhas”. O canto, registrado pelo pesquisador Sérgio Bairon, é um apelo à chuva feito por mulheres da cidade mineira de Jequitibá. Ele serve de introdução a “O ramo”, canção de Socorro Lira que abre o disco, que fala do apanhado de folhas que as rezadeiras usam, imagem que perpassa todas as canções do álbum. “Salve, salve a fé no amor que cura tudo, o mal, a dor” professa a voz sábia de Áurea, apoiada sobre o chão leve de violoncelo e violas.
Em seguida, a “Prece do ó” louva Santo Antônio do Categeró, um santo negro, africano escravizado que, levado como mercadoria para a Itália, tornou-se monge e trabalhava em hospitais. Por suas curas milagrosas, foi santificado e ainda hoje é cultuado na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Bahia. A música traz a marca das sincronicidades. Sua letra é uma prece tradicional recolhida por Cassiano Ricardo. Já sua melodia é dos compositores galegos do grupo Berroguetto mas não foi feita para os versos: quem descobriu a coincidência da métrica perfeita foi o pesquisador, violeiro e cantador mineiro Dércio Marques.
O arranjo da canção tece uma delicadeza ibérico-hindu nas mãos de Lui (violoncelo, violões e harmônio indiano); Marcos Suzano (derbak e samplers) e Eduardo Neves (flautim).
“A rezadeira”, originalmente um rap de Projota, é representante ultra contemporânea do tema, um poema rítmico sobre renascimento que se passa na periferia paulistana. No arranjo de Lui, ganhou belas linhas melódicas, mais definidas, e profundidades outras — na citação a “Relampiano” (de Moska e Lenine), no clarinete, violinos e guitarras. O dueto de Moyseis Marques e Áurea realça a beleza trágica da canção ao contrapor a perspectiva maternal à voz jovem que se acolhe à sombra dessa força feminina. E é curioso perceber na canção a amplitude do tema das rezadeiras: sua personagem-título é evangélica, como aponta o verso “Cantando alto e claro aquele bonito louvor” .
O encontro de “Salve as folhas” — de Gerônimo e Ildázio Marques, no disco cantada por André Gabeh — com “Sem folhas não tem orixás” cantada por Áurea, cruza Ossain com samplers, guitarras e bandola venezuelana. Ao ouvir a gravação, Áurea comenta, com sua risada de menina: “Adoro um roquenrol”.
Em paralelo, “Ponto das caboclas”, de Camila Costa, celebra as mulheres das matas em roupagem afropop, nas palavras de Lui. Iaras, Jussaras, Jupiras e Jandiras rodopiam ao batidão do pandeiro magnético de Marcos Suzano eletrizadas pelas guitarras e Fred Ferreira. Experiência mais radical do disco no uso de timbres e ritmo eletrônico, o arranjo não busca propor um choque entre futuro e ancestralidade. Ao invés disso, ergue um tempo circular, espiral, mântrico, no qual Iracema e Jurema são tão jovens quanto o som que as embalam.
Em “Folha miúda”, de Roque Ferreira, Áurea se reconhece como a menina do samburá cheio de estrelas, nos versos em primeira pessoa que carregam uma síntese possível de “Senhora das folhas” : “Sou eu! Eu com meu samburá cheio de estrelas, a mão de afagar pra lhe benzer” num medley rural buliçoso materializado com desenvoltura na garganta privilegiada da cantora.
No mesmo diapasão se afinam os violões sedosos de Lui e os vocalises cristalinos de Gabeh em “Araruna” (Nahiri Asurini e Marlui Miranda) um canto da etnia Parakanã do Pará. Sobre ela, Áurea declama o poema “Vô Madeira” da poeta Julie Dorrico, pertencente ao povo Macuxi — os versos carregam a compreensão feminina, que atravessa o disco, de Terra e humanidade como um só e reverencia o saber ancestral dos povos originários. O poema publicado em 2020, soa premonitório ao mencionar as dragas que matam rio e homem — uma descrição quase literal do acidente que vitimou levou dois meninos yanomami no Rio Parima, em Roraima, em outubro de 2021.
“Senhora Santana”, canção de origem medieval em louvor à Santa Ana, a avó de Jesus, segue no terreno (e nas águas) do sagrado e da reverência `às mães de nossas mães, o arquétipo da velha, depositária dos saberes, que perpassa todo o conceito do disco e deságua nas vozes das Cantadeiras do Souza em uma “Incelença de Nossa Senhora”.
Em outra das belas convergências de “Senhora das folhas”, Áurea conta que aos dez anos teve uma visão da santa a quem agora dedica sua voz. A atmosfera do arranjo é interiorana e etérea, desenhada no diálogo de violoncelo e moringa, nos arpejos de viola e violões, nos comentários sutis da guitarra.
“Me curar de mim”, de Flaira Ferro, é uma reza de autocura. É impressionante a dimensão que ganham os versos de Flaira, escritos quando a compositora tinha apenas 23 anos, quando saem com tanta franqueza da voz de uma mulher de 82: “Sou má, sou mentirosa/ Vaidosa e invejosa/ Sou mesquinha, grão de areia/ Boba e preconceituosa/ (...)” Um canto ao mesmo tempo seco e exuberante, como o arranjo assinado por Fred Ferreira, que toca todos os instrumentos (viola caipira, viola da gamba, guitarra). Os vocais, que ecoam os Tincoãs, sacralizam e humanizam a canção.
A voz de Vó Joaquina, rezadeira de Serra Talhada no Sertão de Pernambuco, avó do compositor PC Silva, introduz “Na paz de Deus”, samba nascido nas margens do Rio — e dos rios que desaguam na cidade. Alfredo Del Penho (arranjo, violão de 7 cordas e violão), Thiago da Serrinha (cavaquinho e percussão) e Paulino Dias (tambores e percussão) garantem o sotaque ao lado do coro de jovens sambistas da geração lapiana que ecoam a voz de Áurea e a reverenciam como matriarca e madrinha, súditos cientes de sua realeza: Alice Passos, Mariana Baltar, Eliza Addor, Vidal Assis, Pedro Miranda e João Cavalcanti transmutam espinhos em flores, clareiam as trevas como querem Arlindo Cruz, Sombrinha e Beto Sem Braço, autores da canção carioquíssima.
O mesmo time avança em “Banho de manjericão”, sucesso na voz de Clara Nunes, (faixa-bônus), trazendo o canto de Áurea listando pequenas mandingas tão íntimas das casas populares brasileiras, uma ode `a beleza do sincretismo que nos aproxima de todos e sintetizam o “ecumenismo popular” que atravessa o álbum. “Ecumenismo” que, como na sala de Áurea, aproxima Gandhi, Santo Antônio e espadas de São Jorge: “Em casa um galho de arruda que corta/ Um copo d’água no canto da porta/ A vela acesa e uma pimenteira no portão”.
É ÁUREA distribuindo bênçãos com a autoridade de quem é senhora dos tempos, dos ventos. E das folhas
FICHA TÉCNICA
Direção artística, idealização do projeto: Renata Grecco
Direção e produção musical: Lui Coimbra
Arranjos: Lui Coimbra, Fred Ferreira e Alfredo Del Penho
Figurinos da fotos (encarte): Ronaldo Fraga
Fotos encarte do CD: Dan Coelho
Foto de capa: Sérgio Caddah
Realização : Aquarela Carioca Produção de Arte e Biscoito Fino
Direção de produção : Renata Grecco
Relações Institucionais: Cibele Lopes
Gravadora BISCOITO FINO
Projeto realizado com patrocínio do Natura Musical
Sobre Natura Musical
Natura Musical é a plataforma de cultura da marca Natura. Desde seu lançamento, em 2005, o programa investiu cerca de R$ 174,5 milhões no patrocínio de mais de 518 projetos - entre trabalhos de grandes nomes da música brasileira, lançamento e consolidação de novos artistas e projetos de fomento à cenas e impacto social positivo. Os trabalhos artísticos renovam o repertório musical do País e são reconhecidos em listas e premiações nacionais e internacionais. Em 2020, o edital do Natura Musical selecionou 43 projetos em todo o Brasil e promoveu mais de 300 produtos e experiências musicais, entre lançamentos de álbuns, clipes, festivais digitais, oficinas e conferências. Em São Paulo, a Casa Natura Musical se tornou uma vitrine permanente da música brasileira, com uma programação contínua de lives, performances, bate-papos e conteúdos exclusivos, agora digitalmente.
Foto: Dan Coelho_Figurino de Ronaldo Fraga
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